Memória do Corpo Docente – Marília Pontes Esposito

MARÍLIA PONTES ESPOSITO

Quando eu recebi a honra de ser designada pelo Professor Bruno Bontempi Jr. para representar o Departamento de Filosofia da Educação e Ciências da Educação nessa homenagem que confere à Professora Marília Pontes Sposito o título de Professora Emérita desta casa, eu me senti profundamente desafiada. Em primeiro lugar, porque é difícil, em poucas palavras, fazer jus ao legado que Marília deixa em nossa Faculdade. Por outro lado, eu fiquei pensando como justificar aquilo que, por óbvio, não precisa de justificação. Marília merece esse título de Professora Emérita e todos aqui presentes já sabemos disso. Mesmo assim, para dizer alguma coisa, eu optei por vistoriar um pouco a trajetória da professora e pesquisadora Marília.

Marília Pontes Esposito, professora de Sociologia da Educação da Faculdade de Educação da USP desde 1981, iniciou muito cedo suas atividades como professora universitária, quando, em 1977, abraçava a docência no Departamento de Pedagogia da Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira. Marília atuou também de maneira extremamente significativa na Ação Educativa, entre 1994 e 2007, bem como na FAPESP entre 2006 e 2012, quando coordenou a área de Educação daquela instituição. Marília foi também uma presença importante na Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPED), onde chegou a ocupar o posto de vice-presidente entre 1989 e 1993. Mas foi na Faculdade de Educação da USP que a atuação de Marília mais se destacou. Toda a sua produção intelectual foi desenvolvida no período em que aqui esteve, nesta Faculdade que acompanhou toda a sua história e na qual, tendo chegado à vice-direção, ela deixou seus rastros e seus rumos. Nesta casa, Marília cursou Pedagogia, formou-se como intelectual e realizou seu mestrado e seu doutorado, sob a orientação do professor Celso de Rui Beisiegel. Sua dissertação de mestrado, defendida em 1982, e que foi publicada com o título O povo vai à escola: a luta popular pela expansão do ensino público em São Paulo, discorre sobre o crescimento da rede de ensino público secundário na cidade de São Paulo. Como diz sobre o tema, seu orientador Celso Beisiegel,  o livro em que se transformou a tese de mestrado de Marília “reconstitui, passo a passo, o processo de criação de novos ginásios públicos, desde 1940, quando eram apenas 3, até por volta de 1970, quando já se aproximavam de quatro centenas. Examina em profundidade os mecanismos de decisão que prevaleceram  na expansão da rede de escolas; situa, em seu devido lugar, a importância da criação do ensino secundário noturno; explicita as condições de conjuntura que determinaram a multiplicação das denominadas ‘extensões’ das escolas secundárias já existentes nos meados da década de 50. No âmbito da análise então desenvolvida vão surgindo, cada um no seu lugar próprio e também na trama de relações que mantêm uns com os outros e com a situação de conjunto, os diversos agentes envolvidos na transformação do sistema de ensino: intelectuais, administradores, educadores, políticos, partidos, a grande imprensa, a política populista, as organizações populares, as sociedades de amigos de bairros, os movimentos sociais. [Ainda nas palavras de Celso Beisiegel] o livro expõe fielmente o resultado de uma trabalhosa e complexa investigação, sempre conduzida com acuidade e competência intelectual. Como profetizou o orientador daquele trabalho, a publicação foi  “acolhida como relevante contribuição para o conhecimento da história social da educação brasileira”.

Sua tese de doutorado – publicada sob o título A ilusão fecunda: a luta por educação nos movimentos populares – ganhou uma nova edição em 2010, o que comprova que se havia tornado uma indelével referência no campo de conhecimento sobre o qual Marília se dedicou. No prefácio dessa nova edição, José de Souza Martins caracteriza com fidelidade o lugar público ocupado por Marília no território dos estudos da sociologia e da educação. Diz o professor Martins, que “Marília Pontes Sposito é uma de nossas melhores conhecedoras das teorias dos movimentos sociais e indiscutível autoridade na questão da educação e dos dilemas de uma escola em crise, porque excludente, o que se confirma na trajetória deste livro referencial. O próprio desenvolvimento dos acontecimentos sociais e políticos da história recente do país incumbiu-se de ressaltar as qualidades já reconhecidas de A ilusão fecunda. Em particular, de que é robusta análise sociológica de um momento rico e significativo da história do povo e de suas reivindicações, vista do ângulo da relação entre a escola, a família e a comunidade. Sobretudo, como registro e interpretação do frequente desencontro entre o que se poderia chamar de uma concepção popular de escola e a insistentemente alienada política educacional, divorciada da vida e do entendimento que da vida adversa têm os que já não podem, não querem e nem sabem viver sem escola”.  Para Martins, a tese e o livro de doutorado de Marília, tornam-se um “modelo de estudo sociológico sobre o protagonismo da sociedade na educação, que se dá por meio dos movimentos sociais, em particular dos movimentos populares”.

A análise da produção intelectual de Marília demonstra um percurso extremamente focado e, ao mesmo tempo, amplo e diversificado em relação aos temas e aos problemas de pesquisa sobre os quais se concentrou. Seu atual projeto de pesquisa estuda o tema da juventude universitária de maneira exaustiva, trabalhando o que ela nomeia de “intrincadas relações entre os indivíduos e a ação coletiva: os jovens como operadores dos dilemas das sociedades contemporâneas”. Aqui a investigação versa sobre um diálogo crítico entre as teorias da socialização política e do engajamento militante. Pesquisou anteriormente – sempre rodeada de outros investigadores e de estudantes que, por sua vez, são seus aprendizes e orientandos – “o campo de estudos de juventude no Brasil e suas interfaces com a educação e o trabalho”.  Nesse projeto, Marília constatou, nos anos compreendidos na primeira década do presente século, uma maior “recuperação da renda, uma diminuição dos índices de desemprego e a expansão das oportunidades de trabalho formal”, tendências que – no parecer da autora – “já mostram claros sinais de retração no contexto atual, mas é inegável que elas foram parte da realidade juvenil no período recente”. Marília debruçou-se também sobre a matéria  da violência  e do comportamento violento entre jovens e adolescentes no município de São Paulo.  Outra frente de pesquisa desenvolvida pela professora foi a busca das “formas de constituição do campo de estudos sobre juventude no Brasil”. Aqui o foco foi o de “identificar, acompanhar e analisar a produção acadêmica de grupos de pesquisadores voltados para o estudo do tema juventude nas áreas da Educação e Ciências Sociais, cobrindo artigos de periódicos, comunicações em congressos, além de teses e dissertações”. Com isso, a investigação pretendia “conhecer e analisar as condições que favorecem ou dificultam a constituição de um campo de estudos sobre juventude”, bem como – nas palavras de Marília – “verificar e analisar as interações entre o campo acadêmico de estudos e o campo político de modo a estabelecer a maneira como eles estão imbricados na área de juventude e seus eventuais desdobramentos”.

Nos inúmeros artigos, livros e capítulos de livros que tem publicados, a pesquisadora dá continuidade a seus primeiros trabalhos, debruçando-se agora com firmeza e maturidade sobre a temática da juventude. Eu não conseguiria apanhar e fazer jus à intensa produção da professora Marília. Por isso, optei por me limitar ao estudo de três de seus artigos.

  1. O primeiro deles é o texto intitulado Uma perspectiva não escolar no estudo sociológico da escola, publicado em 2003 na Revista USP. Aqui Marília ressalta a importância do estudo da escola, mas sob uma perspectiva que não é exatamente escolar, propondo-se explicitamente a evitar os ardis de uma pretensa sociologia específica, a sociologia da escola. Na verdade, esse trabalho, considerando a escola como unidade empírica de investigação, reconhece que “elementos não escolares penetram, conformam e são criados no interior da instituição e merecem, por sua vez, também ser investigados”. Marília quer iluminar a importância analítica da escola a partir do que nomeia de suas “bordas e franjas”: o bairro, as relações de vizinhança, as expectativas familiares, etc. Marília sublinha ainda o modo como a expansão da escolaridade amplia e confirma a condição juvenil; com a lembrança de que “ninguém nasce aluno; alguém torna-se aluno”. Essa subcultura juvenil passa a impactar as relações escolares e as formas de sociabilidade de uma escola que se ampliava e que continuava segregando e excluindo, ao mesmo tempo em que contraditoriamente aumentava as oportunidades de acesso aos bens culturais da sociedade letrada e mesmo ao mundo público. Nesse sentido, é brilhante a conclusão da autora; e eu cito Marília: “se a vida escolar é amplamente determinada pelas relações sociais a ela externas, em seu interior não ocorre a mera transposição: há recriação, transformação ou produção de novas relações sociais. (…) Na ausência de experiências mediadoras entre o mundo da casa e o universo impessoal da esfera pública, a escola passa a ser o único território de interações contínuas para adolescentes e jovens, ainda sob uma certa proteção do mundo adulto, mesmo que este último apareça como distanciado e também em crise.” Com isso, Marília constata que não há reprodução no ambiente escolar sem que haja como contrapartida, a produção de novas relações sociais.
  2. O segundo artigo que eu gostaria de comentar chama-se Juventude e educação: interações entre a educação escolar e a educação não-formal, publicado em 2008 na revista Educação e Realidade. Marília denuncia aqui a ambiguidade do conceito de formação, quando aplicado às camadas populares. A ideia de formação seria, sob tal vertente, apresentada como algo destinado a seres humanos jovens e, enquanto tal, “incompletos, mal acabados, que demandariam constantemente uma ação de intervenção para conformá-los ou para completá-los em suas faltas ou deficiências. Em geral, a correção como alvo da formação é proposta por alguém que atribui a um alter o que ele não tem ou que o considera deficiente”. Nas palavras de Marília “a ideia de formação de jovens pobres, além daquela oferecida pela escola, encerra essa ambiguidade, pode exprimir um vetor de formação do sujeito, como pode assumir um forte teor de controle, de moldagem, de recuperação ou de contenção”. Nesse sentido, haveria um deslocamento da ideia de cidadania como um conjunto de direitos, para uma ideia de cidadania como ensino de civilidade. Esvazia-se com isso a dimensão dos direitos a serem consagrados e garantidos pelo Estado, e ganha terreno privilegiado “a dimensão do ensino das regras da convivência, do respeito”, descaracterizando, em alguma medida, a própria acepção de cidadania.
  3. O terceiro texto sobre o qual eu me concentrei intitula-se Transversalidades no estudo sobre jovens no Brasil: educação, ação coletiva cultura e foi publicado na revista Educação e Pesquisa em 2010. Marília situa aqui o entrelaçamento da pertença escolar com outras pertenças, à luz desse caráter transversal – escola, trabalho, lazer, sociabilidade – para, a partir disso, constatar, nas palavras dela, que “a fraca adesão aos rituais escolares e a ausência de conflitos em torno da socialização escolar, aparecendo principalmente o retraimento ou a recusa das práticas escolares, somam-se aos percursos instáveis que levaram a uma enorme fragilidade do mundo do trabalho, evidenciando sua incapacidade de absorção dos segmentos jovens de origem popular nos tempos e espaços formais e reconhecidos das ocupações no Brasil”. Estudiosa sistemática e constante da juventude, Marília conclui que os jovens são a ponta do iceberg dos dilemas sociais contemporâneos.

Esses são apenas alguns dos recentes estudos da professora Marília Pontes Esposito, pesquisadora que possui 56 artigos publicados em periódicos dos mais bem qualificados no país e no exterior, 16 livros editados e 43 capítulos de livros editados. Com quase 20 prefácios, posfácios ou apresentações de livros que efetuou, Marília revela também a ascendência teórica que possui em novas gerações de pesquisadores do seu campo de atuação. Suas dezenas de orientações de mestrado e de doutorado revelam seu apreço pela formação de jovens pesquisadores, que são generosamente incluídos em seus projetos de pesquisa, o que os qualifica e os coloca também com facilidade no circuito acadêmico do território da Sociologia e da Educação.

Como atestou o professor Julio Groppa Aquino, no texto de proposição da professora Marília Pontes Espósito para professora emérita da FEUSP – e eu cito as palavras de Julio – “ao examinar em perspectiva o conjunto da obra acadêmica e profissional da professora Marília, em seus diferentes níveis e patamares, não resta dúvida de que estamos diante de uma trajetória irretocável e inspiradora não apenas para aqueles que desfrutaram ou que desfrutam da proximidade de sua companhia investigativa, mas também para seus colegas de outras áreas do conhecimento. Isso sem contar as qualidades pessoais que despontam do convívio afável e respeitoso por ela cultivado. Desta feita – continua  Julio – o nome da professora Marília Espósito é sinônimo do mais alto grau de responsabilidade acadêmica e de refinamento tanto intelectual quanto pessoal; motivo, portanto, de máxima honra para os colegas do Departamento do qual ela tomou e, sempre que convocada, continua tomando parte. Em suma um bastião presente entre nós”.

Mas eu não poderia concluir minha fala sem atentar para uma dimensão pessoal. Marília foi minha professora, no início dos anos 80, quando eu era aluna ainda do segundo ano do curso de pedagogia. Naquele momento, ela, uma muito jovem docente desta casa, nos colocava em contato com o debate sobre a questão da polêmica entre qualidade e quantidade de ensino. Líamos com Marília autores clássicos da sociologia e, dentre eles, nos aproximávamos da produção de Celso Beisiegel e José Mário Pires Azanha sobre essa temática. E Marília avançava no debate, posto que trazia para a discussão as críticas que já eram feitas aos parâmetros excludentes da sociedade em relação ao acesso e à permanência das crianças na escola. As aulas de Marília não eram quaisquer aulas. Eram aquelas aulas que jamais esqueceríamos, pela força do seu conteúdo, pela riqueza das leituras que nos proporcionava a docente, pelo vigor do debate que conseguia fomentar e certamente pela dinâmica pedagógica e pelo carisma da professora. Estou certa de que todas as gerações de estudantes e de pedagogos que Marília formou são testemunhas de que, com ela, nós adquiríamos espírito crítico e passávamos a enxergar o campo da educação de maneira mais complexa e mais elaborada.

Eu terminaria esta minha intervenção, dedicando a Marília as palavras que Brecht dirigia à Humanidade: “há homens [e mulheres] que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida e estes são os imprescindíveis” (Bertold Brecht). Marília, querida, você está entre os imprescindíveis.

 

 

 

 

 

Bibliografia:

 

AQUINO, Julio Groppa. Proposição da Profª. Drª. Marília Pontes Esposito para professora emérita da FEUSP. [texto mimeografado]

 

BEISIEGEL, Celso de Rui. Apresentação. In: SPOSITO, Marília Pontes. O povo vai à escola: a luta popular pela expansão do ensino público em São Paulo. São Paulo: Edições Loyola, 1984.

 

MARTINS, José de Souza. Prefácio à nova edição. In: SPOSITO, Marília Pontes. A ilusão fecunda: a luta por educação nos movimentos populares. São Paulo: Hucitec, 2010.

 

SPOSITO, Marília Pontes. Estudos sobre juventude em educação Revista Brasileira de Educação. mai/jun/jul 1997, n.5, set/out/nov/dez, 1997, n.6.

 

SPOSITO, Marília Pontes. Juventude e educação: interações entre a educação escolar e a educação não-formal. Educação e Realidade. n.33(2). jul/dez 2008, p.83-97.

 

SPOSITO, Marília Pontes. Transversalidades no estudo sobre jovens no Brasil: educação, ação coletiva e cultura. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.36, n. especial, p. 095-106, 2010.

 

SPOSITO, Marília Pontes. Uma perspectiva não escolar no estudo sociológico da escola. Revista USP, São Paulo, n.57, p.210-226, março/maio 2003.