Feusp assina acordo de cooperação com associações e escolas indígenas do Amazonas

A Feusp celebrou recentemente um termo de cooperação técnica, não com universidades, mas com dois órgãos indígenas sediados em São Gabriel da Cachoeira, AM. Trata-se da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e da Organização Baniwa e Koripako Nadzoeri – esta é integrante da Foirn e responsável pelo Içana, território dos povos baniwa-koripako na região rionegrina. O foco da cooperação são as ações de educação escolar indígena nessa área.

Publicado no Diário Oficial em 2 de setembro de 2022, o acordo foi idealizado pelas associações indígenas em parceria com o grupo de pesquisa Ceunir (Centro Universitário de Investigações em Inovação, Reforma e Mudança Educacional), da Feusp. Prevê intercâmbios com docentes, pesquisadores, estudantes, técnicos e líderes das três entidades. Também prevê ações conjuntas de pesquisa, ensino e extensão. Essas atividades servirão à formação docente; à assessoria local em política educacional; e à produção de novos conhecimentos de base intercultural em colaboração com as comunidades federadas à Nadzoeri e à Foirn.

A importância da iniciativa é dupla: além de estender a capacidade de atuação da Feusp para fazer interlocuções, extensão e pesquisa no Alto Rio Negro brasileiro, traz para a atenção da faculdade a riqueza e atualidade dos conhecimentos, problemas e inovações que se podem encontrar nas escolas indígenas contemporâneas – objetos de atenção crescente nas mais diversas áreas de pesquisa científica. Além disso, enquanto a cooperação acadêmica costuma se limitar aos arranjos entre instituições de educação superior, a parceria da Feusp com a Foirn e a Nadzoeri intensifica relações entre a USP e as organizações da sociedade civil, beneficiando uma rede com dezenas de escolas indígenas municipais e estaduais.

Acordo formaliza parceria de 14 anos

São Gabriel da Cachoeira, já alcunhada “a cidade mais indígena do Brasil”, situa-se no extremo noroeste do Amazonas (na região apelidada Cabeça do Cachorro) e faz fronteira com a Colômbia e a Venezuela. É o município de referência da chamada área etnográfica do Alto Rio Negro. Ali, vivem mais de 20 etnias e falam-se 19 línguas, num complexo sistema regional. Essa variedade de povos configura redes ancestrais de relações e trocas que se poderiam dizer culturais, econômicas, matrimoniais, linguísticas, ecológicas, sociais e cosmológicas.

A colaboração da Feusp com órgãos indígenas e indigenistas de São Gabriel em temas de educação escolar e política educacional remonta a 2008, quando o professor Elie Ghanem, hoje coordenador do Ceunir, prestou assessoria à elaboração do Plano Municipal de Educação gabrielense. À época, havia intenso e qualificado apoio da prefeitura local (e de parceiros nacionais e internacionais) à criação de projetos escolares experimentais, discutidos em nível comunitário e implantados nas escolas – todas indígenas – da ampla rede pública municipal. Essa experiência, com seus sucessos, dificuldades e transformações, veio a se tornar emblemática entre os casos-modelo da chamada “educação escolar indígena diferenciada”, bandeira reivindicada pelos grupos originários desde a Constituição de 1988.

Seguiram-se, a partir de 2011, pesquisas coordenadas por Ghanem, com fomento da Fapesp e do CNPq, das quais resultaram as primeiras dissertações, teses e artigos produzidos na convivência com escolas e comunidades kotiria, tuyuka, baniwa-koripako. O mais recente ciclo, realizado entre 2018 e 2021, destinado a identificar atores e condições-chave na seleção dos saberes a ensinar, envolveu cinco escolas baniwa-koripako do rio Içana e afluentes, além de ampliar comparações para SP (escolas guarani) e MS (escolas guarani-kaiowá).

O acordo que acaba de ser firmado responde à demanda feita em 2018 pela Nadzoeri por uma “assessoria mais permanente” do grupo de pesquisa da Feusp às escolas dos seus territórios. De fato, o documento formaliza as relações já cultivadas de cooperação entre a faculdade e os coletivos indígenas do rio Negro, possibilitando sua estabilização e ampliação.

As conversações levaram ao todo cinco anos. Os trâmites foram reanimados depois que se atravessaram os períodos mais difíceis da pandemia no Amazonas e em São Paulo. À distância, os laços se fortaleceram no enfrentamento solidário da crise; e no luto diante da perda de eminentes lideranças do rio Negro pela covid-19, como foi o caso do diretor da Foirn Isaías Fontes, baniwa, que estivera presente e ativo nas reuniões preliminares sobre a cooperação.

Nas fases finais, foi decisivo o empenho de docentes da Feusp, além da direção e da Comissão de Cooperação Nacional e Internacional (CCNInt) da faculdade. Também em São Gabriel muitos trabalharam para viabilizar o acordo, incluindo Marivelton Barroso, diretor-presidente da Foirn, e Juvêncio Cardoso, coordenador da Nadzoeri, com suas equipes e co-lideranças.

Atividades enfocam pesquisa, assessoria e formação

Nesse percurso, foram-se constituindo as linhas de ação e a rede de pesquisadores abarcadas pelo grupo de pesquisa Ceunir, criado em 2015 e coordenado por Ghanem. Em sua forma atual, o grupo tem mais duas linhas de investigação, além da Educação Escolar Indígena: as pesquisas em Educação e Direitos Humanos, e em Tendências em Inovação Educacional.

Os trabalhos de campo do Ceunir envolvem a prestação de assessoria a equipes escolares, bem como oficinas com docentes, lideranças, estudantes e outros públicos. As atividades são planejadas processualmente, em conjunto com os grupos locais. Essa abordagem, ao mesmo tempo em que fornece uma contrapartida mais direta à colaboração das comunidades nas investigações, cria novas chances de convivência, de compreensão, de observação participante e de coleta de informação situada sobre os problemas focalizados. Assim, assessoria e formação tornam-se partes integrantes das trocas que constituem as atividades de pesquisa.

O acordo tem duração de cinco anos. Mas, ao fim desse prazo, pode ser renovado. Para o Ceunir, com efeito, o ato reflete a intenção de uma parceria científica duradoura com esses grupos indígenas, já que as relações de colaboração que o documento reconhece foram impulsionadas por – e impulsionaram – a sua linha de pesquisas em Educação Escolar Indígena.

Repercussão, próximos passos, novas parcerias

Depois da publicação no Diário Oficial, as entidades inauguraram uma agenda de diálogo para detalhar participativamente os planos de ação. A primeira reunião dessa agenda já aconteceu, em 20 de outubro. As cooperantes buscarão juntas fontes diversas para custear as atividades.

O professor baniwa Juvêncio “Dzoodzo” Cardoso, coordenador da Nadzoeri, valorizou dois aspectos que tornam a cooperação especial. Primeiro, o fato de que as ações previstas fortalecem a autonomia indígena para o desenvolvimento e a gestão locais: “Essa parceria tem a perspectiva de subsidiar e fortalecer a implementação de ações dos PGTAs [Planos de Gestão Territorial e Ambiental] dentro do território indígena, visando sempre o desenvolvimento territorial sustentável indígena, como parte da política nacional”. Ele se refere à PNGATI, Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas, instituída pelo Decreto nº 7.747/2012. O primeiro PGTA dos Baniwa-Koripako, começado em 2015, foi concluído e publicado em 2021 (consulte) e confere uma importância estratégica à educação escolar.

Em segundo lugar, Cardoso lembra que o acordo surge de uma antiga e cuidadosa caminhada conjunta: “Todo esse processo de construção está de acordo com os nossos protocolos de consulta, respeitando as convenções da OIT e a consulta livre e esclarecida. Essa parceria resulta de um longo processo, e o mais importante é que ela vem pela demanda da Nadzoeri. Já existe um histórico de envolvimento”. Um protocolo de consulta próprio dos Baniwa-Koripako também está em fase de finalização (saiba mais).

A jovem comunicadora baniwa Lainice Cardoso, de 13 anos, estudante do 8º ano na Escola Baniwa Eeno Hiepole – situada na comunidade Canadá, no remoto rio Ayari, afluente do Içana –, publicou fotos da assinatura do Termo de Cooperação nas redes sociais: “Os estudantes e professores da Escola Baniwa Eeno Hiepole comemoram o momento de assinatura do Termo [de] Cooperação Técnica e estão confiantes e esperançosos com essa construção de parceria. Estamos assim fazendo e marcando um novo momento na história da Educação Escolar Baniwa e Koripako, junto com os demais 23 povos indígenas do Alto Rio Negro”.

As entidades estão abertas a receber o contato de outras pessoas dedicadas à pesquisa e à extensão, na USP e noutras instituições, interessadas em dialogar com a malha de atividades a serem planejadas em conjunto com a Feusp e as organizações e escolas baniwa-koripako no próximo quinquênio. Em São Gabriel, a iniciativa pretende lançar convites a professores, estudantes, lideranças, gestores educacionais, entidades parceiras, docentes universitários e pesquisadores, para atividades que criem, com as redes locais de atores educacionais, espaços plurais de diálogo, estudo, qualificação profissional e debate científico e social.

Redação

Diana Pellegrini e Elie Ghanem

Contatos / Fontes

  • Elie Ghanem, coordenador do Ceunir e professor da Faculdade de Educação da USP – elie@usp.br – (11) 99219-9960
  • Juvêncio “Dzoodzo” Cardoso, coordenador da Nadzoeri e professor da Escola Baniwa Eeno Hiepole – dzoodzo@gmail.com – (97) 98421-5402

Imagens

Imagem 1 – Trabalho de campo em 2018 na Escola Baniwa Eeno Hiepole, comunidade Canadá, bacia do Içana. Ao centro, em pé: Diana Pellegrini, Elie Ghanem e Antônio Góes Neto, pesquisadores do Ceunir-Feusp. Ao centro, ajoelhado, Nelson Thomé Baniwa, então coordenador da escola, acompanhado dos colegas docentes e de estudantes do ensino médio.

foto 1Foto: Arquivo Ceunir.

 

Imagem 2 – Dos encontros na Maloca da Foirn, em fev. 2020, participaram lideranças baniwa como André Fernando, Juvêncio Cardoso, Isaías Jairo da Silva, Nelson Thomé, Isaías Fontes, Mônica Apolinário e Bonifácio José, além de outros professores e acadêmicos indígenas, dos pesquisadores do Ceunir e de parceiros convidados.

foto 2Foto: Juvêncio Cardoso.

 

Imagem 3 – O professor Juvêncio “Dzoodzo” Cardoso faz a assinatura solene do Termo de Cooperação da Nadzoeri-Foirn com o Ceunir-Feusp. Escola Baniwa Eeno Hiepole, comunidade de Canadá, rio Ayari, bacia do Içana, jul. 2022.

foto 3Foto: Lay Cardoso.

 

Imagem 4 – Professores e estudantes comemoram a assinatura do Termo de Cooperação Feusp-Nadzoeri-Foirn na Escola Baniwa Eeno Hiepole, comunidade de Canadá, rio Ayari, bacia do Içana, jul. 2022.

foto 4Foto: Lay Cardoso.

 

Imagem 5 – Publicação do Termo de Cooperação no Diário Oficial do Estado de São Paulo, em 2 set. 2022.

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Fonte: Reprodução.

 

Imagem 6 – Logomarcas das organizações cooperantes.

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Fonte: Reprodução.