Dia da Língua Portuguesa: A celebração da africanidade do português brasileiro

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Na foto, da esquerda para a direita: Consulesa Maria Albuquerque (Emb. Brasileira / IGR-Pretória), Min. Felix Baes de Faria (Emb.
Brasileira), Prof. Stephan Mühr (Univ. Pretoria), Sheila Perina de Souza (FEUSP), Celso Luiz de Oliveira Jr (FFLCH/USP), Profa. Cíntia Antão de Santana (Univ. de Pretória), Profa. Aldley Natale Rodrigues de Souza (Inst. Guimarães Rosa – Pretória). Autora da foto: Michelle Simão (IGR-Pretória).

 

Em celebração ao dia mundial da língua portuguesa, pesquisadores da USP, em conjunto com colegas da Embaixada brasileira e da Universidade de Pretória ministram atividades sobre a língua portuguesa na África do sul.
Por Celso Luiz de Oliveira Jr [1]

 

No dia 5 de maio, comemora-se o Dia Mundial da Língua Portuguesa. E para celebrar essa data, Sheila Perina de Souza (FEUSP) e eu – Celso Luiz de Oliveira Jr (FFLCH) —  fomos convidados pela Embaixada Brasileira na África do Sul para promover atividades durante uma semana. O tema escolhido para este ano abordou as influências das línguas africanas na formação do português brasileiro.

Com o título “Não Existe Brasil sem África”, o conceito do Pretoguês, baseado nas reflexões da antropóloga brasileira Lélia Gonzalez, foi utilizado como guia inspirador para a construção do evento. Já as investigações do doutorado de Sheila Perina, referente às políticas educacionais em relação às influências africanas no ensino do português em Angola, Moçambique e Brasil, desempenharam papel significativo no planejamento das atividades.

Ao todo, nós pesquisadores da USP desenvolvemos quatro atividades, entre palestras, debates, e uma exposição. O evento atraiu um público diversificado, composto por estudantes, acadêmicos e representantes diplomáticos dos países de língua portuguesa.

As palestras e oficinas ocorreram na Universidade de Pretória e na Embaixada Brasileira na mesma cidade, entre os dias 5 e 10 de maio. Já a exposição intitulada “Sopros e Tramas de Resistência: Legados Africanos na Língua Portuguesa” foi inaugurada na mesma semana e estará em exibição no Hall do auditório da Biblioteca Central da Universidade até o final de junho. Posteriormente, será transferida para a Embaixada Brasileira em Pretória.

 

Dia da Língua Portuguesa – Diplomacias

Ministro

 

A data de 5 de maio foi, primeiramente, estabelecida em 2009 pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), organização internacional que reúne países que se utilizam da língua portuguesa como língua oficial, e mais recentemente, em 2019, a data foi reconhecida pela UNESCO.

Na cerimônia de abertura, o Ministro-diplomata Felix Baes de Faria, representante da Embaixada brasileira em Pretória, enfatizou a relevância da celebração da data para o aprofundamento dos laços de amizade entre os membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e ressaltou o papel fundamental das contribuições de afrodescendentes brasileiros na esfera acadêmica, artística e literária do país.

Na mesma ocasião, o Prof. Miguel Coelho, coordenador-adjunto do curso de Português na University of Pretoria e representante do Instituto Camões em países africanos, ressaltou a importância dos esforços brasileiros na promoção desta data, destacando pontos relevantes da rica cultura brasileira.

Para Cíntia Antão de Santana, docente de língua portuguesa na Universidade de Pretoria e uma das organizadoras, a celebração desta data é imprescindível, mesmo considerando as nuances da colonização e a violência que a acompanhou. Segundo ela, haveria pelo menos duas razões fundamentais para isso: “o primeiro é o fato de que, através desta língua eu me reconheço no mundo. Isso é inegável. E a outra questão é a conexão que o evento proporciona aos falantes do português, seja de qual país for”, observou Santana.

Da mesma forma, a Profa Cíntia Santana também apresentou uma importante reflexão em ampliar a participação de outras nações, em especial os países africanos membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP): “Acho importante celebrar a língua portuguesa. Mas mais importante ainda seria celebrar todas as línguas portuguesas, dos diversos países que a fala. Para mim isso é um sonho e não sei como fazer acontecer. Mas quem sabe, consigamos realizá-lo nos próximos anos”, complementou a professora.

 

O Português e o Pretoguês

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Sheila Perina de Souza durante a palestra de abertura (foto: Celso Luiz de Oliveira Jr)

 

No dia 6 de maio, a abertura do evento contou com a palestra intitulada Pretoguês – Não há Brasil sem África, proferida pela doutoranda Sheila Perina de Souza (FEUSP). No auditório da Biblioteca Central da Universidade, a pesquisadora da USP ressaltou a importância dos estudos da Profa Yeda Pessoa de Castro (UFBA) e da Antropóloga Lélia Gonzalez para a compreensão das influências africanas no português brasileiro.

Segundo Sheila, “o Pretoguês termo colonial, que surge de forma pejorativa para desqualificar o português falado pelos africanos em África, durante o período de colonização de Portugal. Indicando, com isso, que o modo de falar dos africanos e seus descendentes não poderiam ser considerados um português legítimo”, explicou a pesquisadora.

No entanto, este termo teria sido ressignificado entre o final da década de 1970 e início de 1980: “Por outro lado, a antropóloga e intelectual brasileira Lélia Gonzalez propôs uma positivação para este termo. Para ela, em virtude da forte influência das línguas africanas no português brasileiro, poderíamos adotar uma visão positiva do termo e dizer que falamos o “pretoguês”, complementou a doutoranda da USP.

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Syiabonga Nkabinde, estudante da Univ. Pretória, durante a palestra (foto: Celso Luiz de Oliveira Jr)

 

Uma das pessoas que acompanharam a palestra, Syiabonga Nkabinde, estudante da Universidade de Pretoria, nos explicou que ficou bastante satisfeito com o que aprendeu no dia. Para ele, que é sul-africano e tem estudado a língua portuguesa há alguns anos, a palestra foi muito importante para clarificar diferenças entre as variedades predominantes em Portugal e Brasil.

Para Sheila Perina, as observações feitas por Nkabinde expressam a validade atual do conceito pretoguês, enquanto elemento histórico e de aproximação entre as diversas populações negras. “O Pretoguês emerge como uma das mais poderosas expressões de resistência do povo negro”, observou a pedagoga. 

 

Sopros e Tramas de Resistência

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Exposição na Biblioteca Central da University of Pretoria. (foto: Sheila Perina de Souza)

 

Na mesma ocasião, foi lançada a exposição “Sopros e Tramas de Resistência: Legados Africanos na Língua Portuguesa”.  Segundo os organizadores, a exposição visa destacar, por meio da oralidade, música e performatividade, os legados africanos na evolução da língua portuguesa e estimular uma reflexão visual sobre essa herança.

A mostra apresenta 30 imagens de fotógrafos brasileiros, objetos cênicos e duas instalações. Entre os fotógrafos colaboradores, destacam-se Wagner Celestino, que recentemente expôs seu trabalho no Sesc 14Bis, e Atílio Avancini, professor do curso de jornalismo na ECA/USP, cujas as imagens são da festa da lavagem do Bonfin, em Salvador. Além deles, a mostra também contou com imagens feitas por Thiago de Barros (SP), Raissa Dandara e Celso Luiz de Oliveira Jr.

A curadoria é de Celso Luiz de Oliveira Jr, mestrando em Antropologia Social na FFLCH/USP, cuja pesquisa aborda políticas de descolonização em universidades sul-africanas, 30 anos após a democratização do país. A expografia também é assinada por ele, em conjunto com seu colega João Mouzart de Oliveira Jr, doutorando em Antropologia Social (FFLCH/USP), cuja a investigação aborda as populações entorno do maior “lixão” eletrônico do mundo, localizado em Gana, na região central da África.

 

Brincadeiras e Ludicidades com o Pretoguês

Foto oficina com as crianças
Atividade lúdica (Foto de Michelle Simão (IGR-Pretória)

 

Outra atividade desenvolvida pelos pesquisadores da USP foi a oficina lúdica “O Pretoguês que Nós Falamos”. Destinada a professores, crianças e suas famílias que estudam português como língua estrangeira na embaixada brasileira, a oficina proporcionou um espaço de aprendizagem interativo e divertido, com o objetivo de fortalecer a conexão afetiva e cultural entre África e Brasil.

Palavras como “caçula”, “dengo”, “moleque” e “borocoxô”, entre outras, presentes no universo infantil, ganharam um significado especial através do reconhecimento de sua origem africana. Da mesma forma, aspectos das línguas indígenas brasileiras foram celebrados junto às crianças, através da degustação de paçoca, um doce cujo nome tem origem no tupi e significa ‘esmigalhar’.

 

O Ensino de Português em Países Africanos – um debate

Foto mesa hibrida
Debate com pesquisadores da USP e professoras da Univ. Pretória e IGR (foto: Celso  Luiz de Oliveira Jr)

 

Outra atividade desenvolvida pelos pesquisadores da USP foi a mesa-redonda intitulada “O Ensino do Português na África”. Sob a coordenação de Sheila Perina de Souza (FEUSP), a atividade ocorreu de forma híbrida, para possibilitar a participação de outros três pesquisadores da USP.

O debate contou com a participação de duas professoras brasileiras que lecionam português na África do Sul. A professora Aldley Natale, dedicada ao ensino na educação infantil no Instituto Guimarães Rosa (IGR-Pretória), e a professora Cintia Antão de Santana, também especializada no ensino de português para estrangeiro, mas atuando para o público universitário, no Departamento de Línguas da Universidade de Pretória.

Ambas as educadoras trouxeram uma contribuição significativa ao debate, compartilhando suas vastas experiências no ensino e oferecendo reflexões sobre os desafios e as oportunidades relacionadas aos materiais didáticos e aos métodos de ensino.

De maneira remota, houve também a participação dos pesquisadores da USP: Ivo Aloide Lé, estudante guineense de doutorado na FEUSP, investigando o ensino de português em Guiné-Bissau; Eugênia Emília Sacala Kossi, aluna angolana de doutorado na FEUSP, com foco na mesma temática em Angola; e Natália Penitente Andrade, aluna brasileira de doutorado na FFLCH, pesquisando sobre o mesmo tema em Moçambique.

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Na mesa, foram debatidos os desafios e as perspectivas do ensino de português em contextos africanos, resultando em um diálogo dinâmico e construtivo. Um dos principais temas em destaque foi a necessidade de ampliar o escopo da discussão para além do português brasileiro e lusitano, considerando também o reconhecimento de outras variantes do idioma, influenciadas pelas línguas locais em cada país.

De maneira reflexiva, a professora Cíntia destacou a centralização do evento em torno do Brasil e de Portugal. Para ela, essa centralização pode ser explicada pelo fato de ambos os países compartilharem o português como língua única ou hegemônica. “É importante notar que todos os outros países na CPLP possuem suas próprias línguas locais, sejam elas oficiais ou não, mesmo tendo o português como língua oficial”, explicou a professora.

 

Diplomacia, Educação e Cultura

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Diplomata Geórgenes Marçal – Embaixada brasileira na África do Sul / Instituto Guimarães Rosa (foto pessoal).

 

Os organizadores avaliaram positivamente os resultados obtidos com as atividades da Semana. Após o evento, o diplomata brasileiro Geórgenes Marçal Neves, chefe do departamento cultural na Embaixada, agradeceu a parceria e enfatizou que as atividades foram calorosamente recebidas entre os membros do corpo diplomático brasileiro na África do Sul.

Com o Pretoguês, a gente explorou toda uma gama de interfaces culturais entre o Brasil e o continente africano”, observou Neves. Segundo ele, a cultura brasileira carrega fortemente certa africanidade, que contribui na aproximação cultural e política dos países africanos.

Com entusiasmo, Geórgenes Neves ressaltou a importância de fortalecer os laços entre a USP e a Embaixada, além de discutir a possibilidade de desenvolver novas atividades no futuro próximo.

“Acredito que exista uma potencialidade gigantesca para a gente trazer mais o mundo acadêmico para ações como essas”, destacou Neves, que também é o responsável pelo Instituto Guimarães Rosa (Pretória), órgão brasileiro ligado ao Ministério de Relações Internacionais, responsável pela diplomacia cultural brasileira.

 

Inspirações anteriores

Importante registrar que a cooperação em questão foi inspirada em iniciativas anteriores, incentivadas por diversos professores e colegas. Desde 2014, durante nossa graduação, Sheila e eu temos acompanhado de perto o trabalho do Grupo de Estudos sobre Internacionalização Acadêmica da FEUSP, sob a coordenação do Prof. Valdir Barzotto.

Nesse grupo, vários colegas têm se dedicado a estabelecer conexões em regiões muitas vezes negligenciadas, como países da América Latina, África e Europa Oriental, explorando temas que abrangem cultura, educação e o ensino do português. Além disso, é relevante ressaltar o papel crucial do saudoso Prof. Roberto da Silva, da FEUSP, cuja trajetória foi marcada pela promoção de cooperações acadêmicas com Angola, entre outras contribuições significativas.

Assim, além destas inspirações, os anseios e dedicação da Embaixada brasileira e do Instituto Guimarães Rosa na África do Sul foram de extrema importância para aglutinar as ideias e construir as atividades. Durante o planejamento e as atividades, fomos muito bem recebidos pela diplomacia brasileira na África do Sul, que trouxe excelentes propostas. Da mesma foram, os colegas das Universidades sul-africanas também se mostraram bastante abertos e colaborativos para atividades como estas.

Na mesma perspectiva, Sheila Perina destacou a confiança e o esforço nos trabalhos: “penso que esta cooperação só foi possível graças à sensibilidade e visão dos nossos parceiros. Tanto da Embaixada, IGR, quanto da Universidade. Foi um trabalho difícil, que foi construído num espírito de colaboração e respeito mútuo. Sinto que foi um passo inovador e corajoso. Mas agora precisamos fortalecer com a participação de outros colegas”.

Para a pesquisadora, “iniciativas como esta corroboram com o enriquecimento de nossa compreensão histórica e cultural sobre a ancestralidade africana do Brasil, mas também fortalece os laços profundos que compartilhamos com a África do Sul e outros países do continente africano”.

 

[1] Texto colaborativo, escrito por Celso Luiz de Oliveira Jr, que é mestrando no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social (PPGAS-FFLCH/USP) e funcionário técnico de áudio-visual na Escola de Comunicações e Artes (USP).

*As entrevistas e imagens foram coletadas pelo autor.