Homenagem à Profa. Dra. Bia Fétizon (1929-2019)

BIA FÉTIZON

A maioria das pessoas passa tão rápido por nossa vida que sequer deixa um reflexo nas nossas retinas. Outras, entretanto, têm o dom de marcar profundamente aqueles que com elas convivem. Certamente nossa Bia Fétizon foi – e é – uma delas.

Professora Doutora Emérita da Faculdade de Educação da USP, BEATRIZ ALEXANDRINA DE MOURA FÉTIZON faleceu no sábado, dia 28 de setembro, aos 90 anos de idade. A vida me deu a sorte de ser sua aluna e, posteriormente, de ingressar no mesmo departamento em que ela trabalhava (EDA) e de tornar-me sua amiga.

A Bia foi, sem medo de exagerar, uma das pessoas mais dignas, competentes, compromissadas com a educação que conheci, a tal ponto que, terminado seu curso, seus alunos sempre lhe prestavam alguma homenagem. Quando a chamavam de filósofa, imediatamente ela retrucava: “Filósofo é quem desenvolve um sistema filosófico. Eu sou estudiosa da filosofia.” Essa humildade não era ingênua ou composta. Mas daqueles que sabem que nada sabem, relembrando Sócrates, e que estão sempre impulsionados pela busca do saber.

Bia era avessa a festas, comemorações e badalações, em especial as acadêmicas. Gostava mesmo de dar aulas, de realizar palestras para alunos, via de regra embevecidos com sua argumentação profunda e articulada. Aí se sentia como peixe em rios cristalinos.

Mas essa era a Bia diurna, da instituição. No outro polo de sua vivência estava a Bia noturna, profundamente religiosa, devota de São Francisco de Assis como tinha que ser. Mas, sem alarde, sem lições e exemplos edificantes. Só ela e o transcendente. A Bia amorosa, sempre mantendo em harmonia seu núcleo familiar e dedicada a seus amigos. E a Bia poeta, que durante muito tempo não se deu a conhecer, até ser descoberta pelos amigos que quase a obrigaram a publicar seus poemas e reflexões, os quais foram reunidos no livro denominado “Sombra e Luz: o tempo habitado”, publicado pela Editora Zouk em 2002.

Gostaria, enfim, de reproduzir um trecho de uma palestra denominada Reflexões sobre Problemas e Perspectivas da Educção no Limiar do Século XXI, que ela proferiu em 1997 para os alunos do curso de Estudos e Problemas Brasileiros da FEUSP, do qual éramos professores o Romualdo, a Sandra Zákia e eu, e que define bem quem era a Bia e qual o farol condutor de sua prática pedagógica:

“Na solidão da consciência ética não há forma alguma de provar-me que, ao fim e ao cabo, tal como sou, tal como me percebo e ao mundo e à minha espécie, eu não seja mais do que total produto do meio, efeito total de condicionamentos, mero resultado (e inteiramente resultado) da cadeia de causalidades recorrentes e intercorrentes (…) Há quem entenda as coisas assim (…) Talvez tenham razão. Mas, pessoalmente, tenho que assumir a violação – que é o principal radical (no sentido de raiz) da liberdade (enquanto possibilidade de superar o mero dado). Tenho que assumi-la como postulado da razão prática (como a razão teórica, a razão prática não dispensa postulados) – como postulado, como pressuposto da vida. Por quê? Porque para mim seria difícil, senão impossível, viver a partir do pressuposto de que não há escolhas a fazer, de que a opção é uma ilusão (ou a decisão uma fraude) – porque tudo está irremediavelmente dado.” (os sublinhados são da autora)

Maria do Rosario Silveira PortoProfessora Doutora aposentada do EDA/FEUSP

No dia 28 de setembro partiu a nossa grande amiga e mestra, Profa. Dra. Beatriz Fétizon. Professora Emérita da FEUSP, deixa um legado acadêmico marcado pela sua grande cultura humanística e pelo imenso saber filosófico, mas sobretudo por ter exercido o magistério como uma grande mestra respeitada, querida e admirada pelas centenas de alunos que tiveram o privilégio de assistir às suas “aulas deliciosas” como eles diziam. Aulas nas quais, para além do conteúdo, “ensinava lições de vida”. A sua admirável maestria era ancorada na crença gusdorfiana de que o objetivo do mestre, além de ensinar, é revelar ao discípulo o sentido da vida e que, portanto, a educação tem por finalidade levar o discípulo a assumir integralmente a sua condição humana. Por isso, para ela, “O ser mestre não é entendido como uma opção profissional – é uma filosofia de vida (…) Professor é menos uma profissão que uma forma de vida, uma postura integral em face de si mesmo, do mundo e do outro (…) profissão de valores e atitudes que gravam (no plano do conhecimento e da ação) vida e pessoa como um todo”. E foi exatamente essa “profissão de fé” na vida e no homem que fez da sua ação pedagógica uma verdadeira iniciação.

Nesses tempos difíceis vividos pela Educação, a sua obra poderá trazer uma nova luz às discussões sobre os rumos da educação e da universidade, particularmente o livro: “A universidade e sua alma endemoninhada”, publicado na coleção Estudos e Documentos, FEUSP, nº 45, 2012.

Mas, o seu legado não se resume a sua atuação profissional; foi um ser humano excepcional que nos deixa um grande exemplo de dignidade, generosidade, lealdade, compaixão, amorosidade… A minha querida amiga Bia era uma das pessoas mais dignas e generosas que conheci. Viverá para sempre na memória de todos os que tiveram o privilégio de conviver com ela.

Maria Cecília Sanchez TeixeiraProfessora Associada Aposentada do EDA/FEUSP

uma luz de corpo presente a menos na escuridão desta nova idade média

uma nova constelação no céu…

Marcos Ferreira-SantosProfessor Associado do EDA/FEUSP

Além de uma das pessoas mais generosas e geniais que conheci, Bia era também poeta e escreveu belos versos, como este que compartilho em sua homenagem:

Inocência original (Beatriz Fétizon)

Por que diabos nasci! Por que diabos nascer

gratuitamente –

um dom de nós, um dom de mim

de que estou inocente –

de que sou pura – virgem –

a inocência original

do cometimento de existir;

eu não pequei;

eu nem sabia;

eu nem sequer existia

quando –

gratuitamente – 

à revelia de mim mesma

doaram-se mutuamente

a minha existência –

o dom de mim que nunca fiz!

A monstruosidade da concepção,

da criação irreverente, onipotente sobre o nada da vida,

que nos doa em amor –

um amor de que estive inocente!

E em dom de mim –

de mim mesma vazia,

de mim mesma ausente

no gratuito de ser –

eu sou; eu continuo sendo;

inapelavelmente.

Rogério de AlmeidaProfessor Associado do EDA/FEUSP

Nós, da Universidade Federal do Maranhão, tivemos a honra e o prazer de ter a professora Beatriz Fétizon como conferencista de abertura do II Encontro de Educadores do Maranhão, no ano de 2006, atendendo a um convite que lhe fizemos. Ela nos brindou com uma bela fala sobre os desafios epistemológicos e educacionais na contemporaneidade e com ela aprendemos que, assim como a história de cada indivíduo, a história da humanidade também ora centra-se no EU, ora centra-se no MUNDO. Beatriz, Bia ou Biazinha, como gostávamos de chamá-la, passou por esse mundo como uma pessoa que conseguia nos encantar pela sua profunda sapiência, infinita generosidade e enorme humildade acadêmica, algo raro em nosso meio. Bia sempre nos fazia ver que há tempo para tudo e que tudo tem um significado profundo, para além das aparências. Um dos maiores aprendizados que tive com ela foi por ocasião de seu discurso como Professora Emérita da FEUSP, quando ela nos falou que o único sentimento que não exige reciprocidade é a amizade. Nunca me esqueci. Também jamais me esquecerei de que, aos finais das bancas das quais participava, ela sempre encerrava sua fala nos dizendo o quanto aprendera com a leitura do trabalho. E de como chamava a atenção apenas para os aspectos positivos da obra lida. Que bom que a Academia reconheceu seu valor ainda em vida, atribuindo-lhe o título de Professora Emérita! E como sou feliz por ter sido contemporâneo dela.

João de Deus Vieira Barros – Titular aposentado do Departamento de Educação II da Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

Gratidão e saudades… Professora Beatriz Fétizon, grande educadora e referência no EDA/FEUSP, minha mestre nas aulas da antiga Estrutura e Funcionamento do Ensino (na época, do ensino de 1º. e 2º graus), ainda no meu primeiro semestre da Pedagogia, junto com a Maria do Rosario Porto.

Semanalmente, seguíamos de carona entre o Butantã e o metro, até eu retornar às últimas estações da linha vermelha do metrô paulistano… Bia, como ela gostava de ser chamada por nós, foi a `pedagoga` que me conduziu nos passos iniciais na universidade, que me ajudou a conhecer a cultura acadêmica e a decidir por caminhos importantes, como adentrar na moradia estudantil. Sua generosidade infinita me orientou e me incentivou a enfrentar o mundo do conhecimento, estendendo os debates em aula até nossa despedida no metrô…

Um dos trabalhos disponibilizados em versão eletrônica é a “A Universidade e sua alma endemoninhada”, publicada pela Série Estudos e Documentos, em 2012, pela Faculdade de Educação da USP.

Professora Beatriz Fétizon continuará presente entre aqueles que acreditam e se dedicam à Universidade Pública e Gratuita, defendendo o direito à Educação do povo brasileiro.

Bia, seguirás como luz de muitos que foram seus estudantes/pupilos, assumindo seu lugar como o brilho das estrelas!

Alice Akemi YamasakiEx-aluna da FEUSP e hoje docente do Departamento Sociedade, Educação e Conhecimento, da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense